Mesmo durante o meu mestrado, quando realizei uma pesquisa que não só buscava responder uma pergunta e resolver um problema, mas também contribuía para os colegas da minha área, eu nunca me considerei uma cientista. Sabe aquele caso clichê, de perguntarem a profissão na ficha do hotel? Então, eu nunca coloquei que eu era cientista. Eu falava que era mestranda ou, no máximo, eu dizia que era pesquisadora, mas ainda com um certo receio.
Este ano, desde que comecei a falar do Impacto Científico, tenho notado uma dificuldade de entendimento em outras pessoas também. Não só em pessoas de outras áreas, família e amigos, mas também em colegas de profissão, que se dedicam exclusivamente à vida acadêmica. Alguns entendem melhor quando eu uso os termos ‘acadêmico’, ‘especialista’ ou, principalmente, ‘pesquisador’.
Aí eu fiquei pensando: quem diz que é cientista ou que é pesquisador? Qual a diferença entre esses termos? Será que a imagem estereotipada de cientista afeta a nossa própria percepção e definição? Ou é um problema dentro do próprio meio acadêmico?
Primeiro, o que é ser cientista para o público em geral?
No podcast Working Scientist, há um episódio1 em que eles fazem um experimento com meninas adolescentes para entender a percepção delas sobre cientistas. Primeiro, eles pedem para as garotas desenharem e comentarem como elas imaginam que uma cientista seja.
Como você acha que elas desenharam? Talvez o mesmo que você desenharia: mulheres com jaleco branco, óculos de proteção, luvas e um vidro ao lado com líquido verde borbulhando. Outras até desenharam o momento da explosão de um experimento, com a cientista cheia de fumaça e seus cabelos ao alto.
Até que eles mostraram as fotos de cientistas reais em seus locais de trabalho.
Essas fotos você pode encontrar aqui2 ou no Instagram deles, pois é um projeto da Nature para a divulgação da diversidade da profissão cientista.
Para resumir, por meio das fotos foi possível mostrar a diversidade de locais de trabalho, de aparências, looks e outros elementos que não estavam no imaginário das alunas. Por exemplo, nem toda cientista usa jaleco branco e óculos de proteção! Mas é isso, vemos em filmes, desenhos, usamos na aula de ciências da escola e é um barato. Portanto, claro que é isso que tem na nossa memória do que é ser uma cientista.
Este experimento tinha como objetivo quebrar os estereótipos e mostrar a diversidade, principalmente para as meninas, sobre as possibilidades da profissão. Um dos responsáveis da pesquisa comentou “você não pode ser algo que não consegue enxergar”. Apesar do foco ter sido a divulgação da profissão para a nova geração, é um exercício que poderia ser feito com pessoas de qualquer idade, como forma de divulgação da ciência. Aliás, você viu as atletas cientistas que estão nas Olimpíadas Paris 20243? Veja as fotos. Não deixa de ser uma quebra de paradigma.
Foi depois de ouvir o podcast que eu me dei conta que isso poderia ser a causa da dúvida de amigos e familiares de quando eu falo sobre cientistas. Pode ser que eles tenham esse mesmo imaginário, porque fomos estimulados a pensar assim desde a infância. Se há um estereótipo de como a pessoa é, imagina do trabalho que ela faz? Portanto, como eu consigo comunicar melhor o que é conectar a “ciência” e o impacto social (que é outro termo difícil de explicar)? Como falar de cientistas que estão trabalhando com ONGs? Porém, se eu uso o termo ‘pesquisadores’, aí sim, as pessoas entendem melhor o que eu quero dizer com o Impacto Científico.
O que é ser cientista para um cientista?
Eu ainda estava com a pergunta: qual a diferença entre ser cientista e ser pesquisador? Deve ter uma explicação mais profunda que para além do estereótipo. Depois de algumas buscas, eu achei um vídeo incrível e super didático do biólogo, professor e doutor Gilson Volpato4 em que ele discute a afirmação “Pesquisador é sinônimo de cientista”.
Eu recomendo muito que você assista ao vídeo, pois além de ele explicar melhor do que eu, é importante você ter a sua própria interpretação.
Basicamente, o que eu entendi da explicação:
“A pesquisa faz parte da ciência. Mas nem toda pesquisa vai virar ciência”.
Cientista: Focado(a) na geração de um conhecimento novo através do método científico e que a conclusão dos resultados possa ser replicada em outros lugares, ainda que com adaptações locais. Contribui com o avanço do que a ciência já conhece, de forma universal e reconhecido por pares, os quais podem usar a conclusão (ou descoberta) para avançarem em seus trabalhos.
Pesquisador(a): Focado(a) em responder uma pergunta ou resolver um problema usando um método, que pode ser científico ou não. Contribui para contextos particulares e específicos e a conclusão dos resultados não pode ser replicada globalmente, ainda que seja de alto impacto para o contexto local.
Antes que você ache algo, o professor Gilson de forma alguma rebaixa os pesquisadores. Pelo contrário, ele mesmo comenta que não gosta da separação por palavras. Mas ele fala da importância do entendimento dessas ‘profissões’, para entendermos o que fazemos e o como fazemos. Ele também traz uma reflexão do problema da falta de entendimento dentro das ‘escolas de cientistas’, que são os programas de pós graduação stricto sensu. Ou seja, se nem os orientadores e as escolas que nos formam educam sobre o que é ser cientista e o que é ser pesquisador, como vamos querer que a população leiga saiba nos reconhecer?
Crise de identidade ou problema de comunicação dentro da classe?
Apesar da falta de formação sobre a história e filosofia da ciência, a ponto de entendermos melhor quem somos e o que fazemos, eu ainda fiquei com uma dúvida: todas as áreas do conhecimento e níveis de graduação têm o ‘alvará’ para ser cientista? Por exemplo, mesmo eu me dedicando a estudar e pesquisar para contribuir com um novo conhecimento universal, mas ainda sem sucesso e sem o doutorado concluído, eu sou permitida a falar que sou cientista?
Como eu comentei no início do texto, eu nunca me considerei cientista e nem pesquisadora não só porque eu nunca tinha parado para refletir, mas porque eu não me sentia autorizada a me definir assim pelo próprio ambiente acadêmico. E isso só piorou depois que eu fiquei anos longe da área acadêmica e voltei para as Ciências Sociais, depois de ter ‘saído’ das Ciências Biológicas, que é um dos principais estereótipos de cientistas, junto ao pessoal da Química e Física, ou seja, os cientistas “malucos”, com jaleco, cabelo arrepiado, óculos e um equipamento na mão.
Eu ainda acho que há muito preconceito, explícito e velado, dentro da academia sobre a definição de ser cientista. Haja vista a discussão sobre Ciência Cidadã, que sugiro que você ouça o episódio 3 do nosso podcast5 onde discutimos como essa abordagem é vista pelos pares e como essa definição do que é ser ‘cientista’ é questionável, inclusive em relação ao nível de graduação e das áreas do conhecimento. Aliás, quantas vezes já vi pessoas das Humanas ou das Ciências Aplicadas não serem reconhecidas como cientistas. Será que está tudo bem pra eles ou isso só pega pra mim?
Talvez tudo isso seja só uma crise de identidade minha. Para a sociedade ser pesquisador ou cientista é a mesma coisa e isso não importa. E eles estão certo. O que importa é o que entregamos para o mundo. Mas em um contexto de crise da ciência no Brasil, em que nossa produção científica só cai6, em que o desinteresse da profissão pela nova geração só aumenta, será que não seria um pouco sábio a gente se unir e ter menos preconceitos dentro do nosso próprio meio? Claro que é importante saber a história, as definições e saber se colocar. Mas acho que hoje a ciência precisa de mais pesquisadores divulgando e se sentindo cientistas - para aqueles que assim desejam. Sem se sentirem mal ou pedindo licença, seja pela área, nível de formação ou porque ainda não conseguiu publicar algo universal. Acho que muitos pesquisadores que utilizam do método científico e que se dedicam a esse tipo de pesquisa, querem fazer um trabalho relevante para o avanço da ciência e se permitirem a serem cientistas.
No fim, quem dá o alvará para a pessoa ser considerada cientista somos nós mesmos. Nós que temos que bancar nossas escolhas, trabalhar para nos aprimorarmos profissionalmente e nos posicionar. No dia a dia, o que importa é quem faz um trabalho sério e de qualidade. É a contribuição teórica ou prática, local ou global, mas, claro, sempre com o rigor científico.
E vocês se consideram cientistas ou pesquisadores? Deixo vocês com essa.
Why females students at an inner London school are seeing scientists in a different light? Working Scientist Podcast.
What does a scientist look like? Where I Work is an award-winning photography feature from the journal Nature.
Ciência e esporte: quem são as mulheres cientistas competindo nas Olimpíadas de Paris 2024? Mídia Ninja.
Série Ciência: Pesquisador é sinônimo de cientista | Ciência & Ousadia. Episódio 21. Gilson Volpato Canal no YouTube.
Ciência Cidadã: como integrar a pesquisa científica com cidadãos a ficarem #DeOlhoNosCorais, com Edson Vieira. Episódio 3. Podcast Impacto Científico.
Produção científica no Brasil caiu novamente em 2023; queda foi observada em 35 países. Agência Bori. Julho de 2024.
Obrigada, Sarita pela leitura e comentário! É muito complexo isso, né? Acho que não tem uma resposta certa, só aquela que nos deixa confortável mesmo. Adorei o seu conteúdo, já estou seguindo! 🙂
Adorei seu texto! Sempre pensei nisso, e nunca cheguei a uma conclusão. O departamento era pesquisa e desenvolvimento, mas meu cargo cientista de alimentos. Embora também fizesse experimentos de jaleco em laboratório e na fábrica, passava a maior parte do tempo no escritório. E hoje meu trabalho é comunicar ciência e pesquisas. Acho que ainda não sei definir, mas concordo com sua conclusão. 🙂